"Se eu estou nesse cano, não posso me calar. Refiro-me a fatos que já foram mencionados por alguns dos leitores deste blog em seus comentários sobre a última postagem: a Parada do Orgulho Gay de São Paulo, as estarrecedoras violências reais e simbólicas que ameaçaram seus participantes e a bomba de fabricação caseira lançada contra alguns deles. Trinta pessoas ficaram feridas.
Mas, antes de comentar estes fatos, quero lhes contar algo que aconteceu comigo ano passado e que está, de certa forma, relacionado a eles. Na Parada do ano passado, por causa de trabalhos, eu não pude ir a São Paulo participar da celebração (este ano aconteceu a mesma coisa). Fiquei no Rio de Janeiro e, às 13h daquele domingo, fui almoçar num restaurante em companhia de amigos.
O restaurante fica em Ipanema e é freqüentado quase só por gays e lésbicas. Ao lado da mesa que escolhemos, havia uma ocupada por um grupo de cinco mulheres heterossexuais na faixa dos 35 aos 45 anos. Elas estavam tão entretidas em sua conversa pública sobre aventuras e desventuras amorosas que mal notaram nossa presença. Não sei por que uma delas, em meio a um testemunho, citou a palavra “gay”.
Só sei que, na hora, eu suspendi ainda mais minhas antenas. Outra delas lembrou, então, às demais, que, naquele momento, estava acontecendo, em São Paulo, a Parada do Orgulho Gay, ao passo que uma terceira – loira de tinta e com expressões congeladas por botox – fez cara de nojo e disparou: “Se eu pudesse, eu jogaria uma bomba para matar todos de uma vez”. Ninguém me contou, eu vi e ouvi.
É possível que alguns de vocês já conhecessem alguém que já expressou semelhante fantasia genocida ou já tenham ouvido falar de alguém que a expressou sem cerimônias: a vontade de promover a morte dolorosa e em massa daqueles que são diferentes, nosotros. Hoje, depois da Parada do último domingo, graças ao noticiário, todos nós conhecemos alguém que saiu da fantasia genocida e partiu para a prática; lançou realmente a bomba sobre os diferentes; e, se não conseguiu matar tantos quanto queria, foi porque não dispunha de tecnologia que lhe permitisse construir uma bomba de destruição em massa... Não se enganem: quem joga uma bomba de fabricação caseira sobre seres humanos que festejam, lançaria também uma bomba nuclear.
Mas, para mim, tão chocante quanto este crime perpetrado contra os participantes da Parada foi a maneira como o Jornal Nacional cobriu este fato. É preciso mais que nunca desmascarar a mentalidade, visão de mundo ou ideologia que está por trás do aparentemente isento, neutro ou objetivo discurso do Jornal Nacional. Não há nada de neutro ou objetivo no discurso do Jornal Nacional ou de qualquer jornal. O discurso de qualquer jornal é sempre uma interpretação dos fatos. E os fatos podem ter mais de uma interpretação ou podem ser visto de diferentes ângulos. É preciso que a gente saiba disso para que não engula certas interpretações como verdades absolutas.
Em sua cobertura sobre a bomba jogada contra os homossexuais, o Jornal Nacional escolheu apenas um "especialista" em comportamento humano para avaliar a atitude do criminoso. E este “especialista”, em sua fala para o telejornal de maior audiência no horário nobre, defendeu que o crime pode não ter sido motivado por homofobia, mas, sim, por algo como um simples estresse, como aqueles que levam às brigas no trânsito. Pois é, eu tive de viver para ouvir tamanho absurdo, para dizer o mínimo... Bomba no cu dos outros - de nosotros - é refresco!
Se, em vez de jogar a bomba contra a passeata gay, o criminoso tivesse lançado o artefato sobre a marcha de evangélicos ou mesmo sobre os participantes do show que comemora o aniversário de São Paulo, a avaliação do tal especialista seria a mesma? E a cobertura do Jornal Nacional seria a mesma? Por que ninguém se estressa com a marcha de evangélicos nem com o show da virada na Avenida Paulista?
Ora, porque em nenhum destes eventos está em jogo a representação e a manifestação, logo, a visibilidade de uma minoria social construída e tratada historicamente como “pecadora”, “pária”, “doente”, “degradada” e “corruptora dos valores da família” além de silenciada. Ainda que haja “viados” e “sapatões” na marcha evangélica ou entre os foliões do show da virada, estes não estão celebrando o orgulho de serem homossexuais nem reivindicando direitos civis para o coletivo do qual fazem parte, ao contrário. Logo, não há razão para se jogar uma bomba sobre eles, não é mesmo?
Só um genocida em potencial ou cínico em último grau de gravata, batina ou avental não admite que o que motivou o criminoso a jogar a bomba sobre a Parada de São Paulo foi homofobia – aversão e ódio injustificado e irracional por homossexuais. Por que não admite? Para não fortalecer os argumentos de nosotros em nossa reivindicação por uma lei que criminalize a homofobia e nos proteja de violências dela decorrentes?
Não há “promiscuidade” ou “devassidão” praticada por alguns homossexuais em sua celebração durante a Parada que justifique alguém lançar uma bomba contra eles. Do contrário, deveríamos suspender os carnavais de rua do país, pois, o que não falta, neles, são “devassidão” e “promiscuidade” praticadas pelos foliões. Os excessos de alguns participantes da Parada e os descaminhos que esta vem trilhando podem (e devem!) ser alvo de um sério debate entre nosotros, não de bombas de fabricação caseira ou de violências verbais lançadas por locutores, comentaristas, padres e pastores hipócritas. Sexo – ainda que algumas de suas manifestações escandalizem os caretas, hipócritas e falso-moralistas – é vida.
Tentar matar quem celebra a vida e fomentar a violência contra eles são crimes! "
Jean Wyllys
Retirado do site: http://bloglog.globo.com/jeanwyllys/
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