junho 24, 2006

O sentimento de não-pertencimento

Lembro uma vez uma situação bem particular me deixou chocada quando ainda era monitora no museu...

Sim meus caros, durante 4 anos fui guia de exposição, lidava tanto com o público curioso (a gente chamava de grupo espontâneo), como com crianças de escolas particulares e públicas, além de apresentar a arte a grupos de comunidades populares, era desafiador eu amava isso!

O tal choque se deu quando uma vez, atendendo a um grupo de crianças de uma comunidade de baixa renda, um menino (pequeno, bem novo, uns 6 ou 7 anos de idade) com o rosto e os braços marcados de perebas (feridas criando casquinhas secas, sabe?) , nariz escorrendo, camisa do uniforme remendada... me encarou...

(já deu pra visualizar ne?)

...pois bem, eu estava formando fila, a exposição era em homenagem ao Pelé, nós, os monitores tínhamos que formar uma fila de crianças no exterior do museu, para que o grupo entrasse num túnel que havia sido montado... sim, tinha sido montado um túnel fechado na entrada onde simulava aquele túnel que tem no campo de futebol, tinha um som ensurdecedor de torcida e tudo mais... as crianças entravam correndo, meio que malhando, se preparando pra entrar na primeira sala da exposição, que era toda gramada, era uma emoção vê-los adentrar o campo... eles ficavam emocionados e empolgados... se sentiam verdadeiros craques em campo!Tinha uns que até davam cambalhotas! hehe

Esse menino, virou pra mim, ainda lá fora, e me pergunta "tia, eu vou poder entrar aí? Aí não é lugar só pra bacana?" Eu sorri e disse que não, que aquele prédio era público, que qq pessoa tinha direito de entrar lá, ele, o pai dele, a mãe, e quem quer que fosse, ele desacretidou, uma ruga no meio da testa se formou meio que duvidando de mim... mas ele acabou cedendo e o fato de entrar naquele prédio lindo (Casa França Brasil) o fez acreditar no que eu havia dito.

Quando passou pelo tal túnel, se animou e depois da primeira sala (a tal gramada) ele já se sentiu à vontade, se sentiu parte daquele lugar-de-bacana... ele se sentiu lá, como qq um, aprendendo e se divertindo, e lembro que ele amou a exposição! ]

"Tarefa cumprida pensei no final da visita guiada"


Esse episódio ocorrido em 2002 voltou a minha mente quando esse fim-de-semana participei de um encontro internacional no Hotel Marriot em Copacabana. Adentrar aquele hall exuberante, com aqueles móveis Luis XV, tapetes macios, sofás forrados com o melhor tecido, lustres de cristal... aqueles funcionários trilingues preparadíssimos me olhando na intenção de verificar, perceber ou quiça advinhar o que eu estava precisando me deixou apreensiva, um peixe fora d´água certamente, afinal de contas aquele sim era um lugar pra bacana!

Tá, eu também sou bacana, e tenho discernimento, eu sei, posso racionalizar aquilo tudo, e foi o que eu fiz.

E, muito pelo contrário, não me senti coagida, mas sempre que entro num lugar luxuoso como aquele penso na história de vida de milhares de brasileiros muito pobres e miseráveis... não tenho como escapar do choque que a desigualdade social brasileira me dá quando percebo as diferenças berrando no meu ouvindo e se mostrando assim tão claramente.

Percebo que eu sou sim, como milhares de brasileiros, que não teria grana pra me hospedar num hotel daqueles, nem sequer pra uma diária ou imagine pagar um jantar preparado por um chef internacional naquele restaurante com as mesas repletas de talheres e taças!? Uma pra água, outra pro vinho, um garfo pra salada, outro pro prato principal... credo! rs

Saio do almoço do evento, olho em volta, na Av Atlântica, vejo um monte de gente miserável, prostitutas, garotos de rua, camelôs, ai tudo se reconfigura na minha mente, de onde eu tinha saído, pra onde eu tava indo, pego a van pra Niterói, ali estão mais trabalhadores exaustos após mais um dia de trabalho...

O motorista da van é um deles, somos parados por um blitz perto da ponte, o guarda armado até os dentes nem pede o documento, dá uma conversa no motorista, fala do calor, e que os policiais estavam precisando de uma ajuda pra comprar uma água. "O senhor poderia nos dar uma força piloto?"

O motorista deu, uns 20 reais...

Todas essas informações se misturam novamente dentro da minha cabeça... Penso na comida deliciosa que comi, nas pessoas importantes que eu conheci, na maciez do sofá do hall do hotel, e também me lembro de um grupo de camelôs que se esforçavam pra vender pros gringos quinquilharias nativas brasileiras ...

Volto pra casa, vejo um casal de idosos aposentados cada um em um cômodo da casa assistindo TV, é, porque como a maior parte das pessoas no país eles não tem dinheiro para frequentarem um teatro, um restaurante ... resta-lhes assistir novela da Globo, e ver pela TV, tudo aquilo que eu, a filha deles tinha acabado de ver na vida real, ostentação, desigualdade social e corrupção.

A vida imita a arte e a arte imita a vida?

Quem veio primeiro? O ovo ou a galinha?

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