dezembro 11, 2006

Dentro do Mar tem Rio


O que posso dizer???? Já são 5 da manhã e minha cabeça não pára de pensar no show que assisti na noite anterior... Show por mim muito esperado, ingresso comprado no setor VIP com dias de antecedência, para ver a minha Bethânia não poderia ser diferente.

Tá certo que sou deveras fã de Maria Bethânia, mas dessa vez... ela se superou (como sempre).

O tema central do show era o elemento ÁGUA

A cenografia de Bia Lessa, os músicos vestidos de branco, como se estivessem num barco, uma oferenda a Iemanjá, rainha do Mar... Bethânia cerca a temática em todos os sentidos.

No ínicio, antes das cortinas se abrirem, no telão passa uma campanha a favor da economia de água e uma homenagem aos ambientalistas carregam essa bandeira... As cortinas enfim se abrem, meu coração dá um aperto, as lágrimas vêm aos meus olhos (água...), ela surge, imperatriz, onipresente em todo o teatro... na parede do palco um céu azul intenso... o Mar refletido no céu.

Todas as músicas tinham esse componente... a ÁGUA.

As letras traziam mensagens de lágrimas de corações partidos, mar, cachoeira, chuva, tempestade, rio... um passeio pela cultura afro-candomblé era esperado e Bethânia com toda propriedade passeia pelos ritos, e dá uma liçao, homenageia as três rainhas:

Iemanjá - rainha do Mar

Iansã - senhora das tempestades
e
Oxum - rainha das águas doces

Canta cações de Vinícius... Tom Jobim... Fico estática. O público vai ao delírio.

Entra um intervalo. Os músicos permanecem tocando... aproveito para ir ao banheiro (tirar a água, rs)

Volto correndo. Pego o lenço que pedi ao meu amigo (também mto fã da diva) que levasse pois havia esquecido o meu em casa. Não usei maquiagem nos olhos, nem na boca, queria estar de cara limpa pra recebê-la, para vê-la, para encará-la pela primeira vez...

Bethânia entra vestida de Iemanjá... apenas vejo a divindade ali, serena, cantante, soberana, em cima do palco que parecia um barco, Bethânia era a oferenda para a rainha.

Até que ela canta uma música que fora sucesso da Dalva de Oliveira muitos anos atrás... "Atiraste uma pedra" recordações vem a minha mente na hora e mais lágrimas aos olhos. Meus e também nas dezenas de pessoas, a voz entrava e a mensagem só me deixava concordar com o balançar da cabeça. A minha água ficava no lenço emprestado. Ela acertou em cheio, no meu momento, aquela música era pra mim. Um presente.

Até que o momento mais incrível do show está por vir... Ela declama um poema. Todos fazem um silêncio sepulcral, ela fala do Brasil, dos problemas, sua voz fere igual a um canivete e sai cortando tudo, palavras, sentidos, gestos, uma interpretação firme como bem pedia o texto. Até que no final ela dá o nome Ultimatum, Alvaro de Campos, 1917.

Como um poema tão antigo pode ser tão atual???? O público foi ao delírio, um casal cochichava atrás de mim:

"Alvaro de Campos é pseudônimo de Fernando Pessoa"

Mas eu já sabia.




ULTIMATUM

Fora tu,
reles
esnobe
plebeu
E tu, imperialista das sucatas
Charlatão da sinceridade
E tu, qualquer outro
Ultimatum a todos eles
E a todos que sejam como eles
Todos

Monte de tijolos com pretensões a casa
Inútil luxo, megalomania triunfante
E tu, Brasil, blague de Pedro Álvares Cabral
Que nem te queria descobrir

Ultimatum a vós que confundis o humano com o popular
Que confundis tudo
Vós, anarquistas deveras sinceros
Socialistas a invocar a sua qualidade de trabalhador
Para quererem deixar de trabalhar
Sim, todos vós que representais o mundo
Homens altos
Passai por baixo do meu desprezo
Passai aristocratas de tanga de ouro
Frouxos
Passai radicais do pouco
Quem acredita neles?
Mandem isso tudo para casa
Descascar batatas simbólicas

Fechem-me tudo isso a chave
E deitem a chave fora
Sufoco de ter só isso a minha volta
Deixem-me respirar
Abram todas as janelas
Abram mais as janelas
Do que todas as janelas que há no mundo

Nenhuma idéia grande
Nenhuma corrente política
Que soe a uma idéia grão
E tu, Brasil...
O mundo quer a inteligência nova
O mundo tem sede de que se crie
Porque aí está o apodrecer da vida
Quando muito é estrume para o futuro
O que aí está não pode durar
Porque não é nada

Eu da raça dos navegadores
Afirmo que não pode durar
Eu da raça dos descobridores
Desprezo o que seja menos
Que descobrir um mundo novo

Proclamo isso bem alto
Braços erguidos
Fitando o Atlântico
E saudando abstractamente o infinito.

Alvaro de Campos, em, pasmem, 1917

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